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quinta-feira, 12 dezembro, 24
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O traslado do finado no Ponto de Ipirá

Foi no começo da década de 1990, na Praça Froes da Mota. Pássaros piavam, álacres, na copa dos oitizeiros. Uma fileira de Kombis brancas espichava-se na lateral da praça, aguardando os passageiros com destino a Ipirá. Nos bancos, muita gente aguardava o embarque, carregando embrulhos, vaquejando crianças, inteirando-se das novidades em conversas, o acentuado sotaque sertanejo fragmentando o silêncio.

Naqueles tempos ainda eram comuns idosas e mulheres de meia-idade com saias longas, anáguas e aqueles lenços característicos, cobrindo cabeças e cabelos longos. Idosos com chapelões, barbas alvas, ralas, e botas curtas de couro cru se aporrinhavam, apesar das conversas longas que ajudavam a encurtar a espera.

Os motoristas que encaravam os 90 quilômetros da Estrada do Feijão reuniam-se em magotes, entretendo passageiros, conversando entre si. Às vezes, alguém chegava querendo despachar encomenda, indagar sobre valor de passagem, mandar ou saber de algum recado. Naquela época telefone era privilégio de poucos e rede social coisa de ficção científica. Daí a necessidade do corpo-a-corpo, do contato verbal frequente.

Entardecia e o poente despejava tons alaranjados nas copas das árvores quando o funcionário da funerária chegou. Ar grave, indagou quem toparia conduzir um finado até uma cidade remota do Oeste Baiano, já bem perto da fronteira com o Piauí.

– Qual é a distância? – indagou um dos motoristas, de meia-idade, que empunhava a chave da Kombi, adornada com um chaveiro farto. 

– Novecentos quilômetros até lá – informou o agente funerário.

– Então eu quero tanto – apressou-se o motorista, com sua proposta. Nos anos 1990 a inflação era vertiginosa e a troca de moeda fato corriqueiro no Brasil. Nem lembro o valor cobrado. O funcionário prometeu consultar os patrões, a família do finado, estipulou prazo para a resposta. 

Explicou que o morto era assaltante de bancos, tombara em tiroteio com a polícia. Todo mundo recordou, então, do assalto cinematográfico de dois dias antes, com fuga, reféns, tiroteio, mortes e uma vasta cobertura da imprensa, as manchetes se sucedendo, sangrentas. O assalto fora no Sul da Bahia, mas a perseguição trouxe o drama para a Feira de Santana, os detalhes emocionantes podiam ser conferidos nas páginas dos jornais, ganharam destaque nos telejornais soteropolitanos.

– Vou levar o caixão até o São Francisco e lá despejo no rio – brincou o motorista, provocando gargalhadas. Depois, sério, preocupou-se com os detalhes da viagem: a remoção dos bancos da Kombi para acomodar o caixão, mobilizar alguém para acompanhá-lo na jornada extensa, madrugada afora. Calculou que sairia de Ipirá –  passaria por lá antes da viagem – no início da madrugada.

“Mas só aceito viajar se for por um ‘tiro’ de dinheiro”, esclareceu. E explicou seu cálculo: multiplicou a receita pela condução de dez passageiros até Ipirá por dez – a diferença da distância entre as duas viagens – para a ida e para a volta. Disse que não faria por menos, se inteirou sobre o assalto, o tiroteio, as mortes. Quem pagaria o traslado? Supunha-se que a família do assaltante morto.

– Ladrão de banco tem dinheiro, nunca é enterrado como indigente –esclareceu alguém.

Depois a praça foi se esvaziando, os viajantes que iam para Ipirá embarcaram, os pássaros silenciaram e, no começo da noite, o caixão do assaltante foi embarcado – com solenidade e muita labuta – para a derradeira viagem em direção ao Oeste Baiano.

Os poucos retardatários acompanharam o ritual em silêncio e um deles, depois da fúnebre partida, filosofou um pouco sobre a brevidade da vida e o caráter trágico da vida, já sob as sombras da noite que desabara por completo.

Por André Pomponet

 

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