Foi no começo da década de 1990, na Praça Froes da Mota. Pássaros piavam, álacres, na copa dos oitizeiros. Uma fileira de Kombis brancas espichava-se na lateral da praça, aguardando os passageiros com destino a Ipirá. Nos bancos, muita gente aguardava o embarque, carregando embrulhos, vaquejando crianças, inteirando-se das novidades em conversas, o acentuado sotaque sertanejo fragmentando o silêncio.
Naqueles tempos ainda eram comuns idosas e mulheres de meia-idade com saias longas, anáguas e aqueles lenços característicos, cobrindo cabeças e cabelos longos. Idosos com chapelões, barbas alvas, ralas, e botas curtas de couro cru se aporrinhavam, apesar das conversas longas que ajudavam a encurtar a espera.
Os motoristas que encaravam os 90 quilômetros da Estrada do Feijão reuniam-se em magotes, entretendo passageiros, conversando entre si. Às vezes, alguém chegava querendo despachar encomenda, indagar sobre valor de passagem, mandar ou saber de algum recado. Naquela época telefone era privilégio de poucos e rede social coisa de ficção científica. Daí a necessidade do corpo-a-corpo, do contato verbal frequente.
Entardecia e o poente despejava tons alaranjados nas copas das árvores quando o funcionário da funerária chegou. Ar grave, indagou quem toparia conduzir um finado até uma cidade remota do Oeste Baiano, já bem perto da fronteira com o Piauí.
– Qual é a distância? – indagou um dos motoristas, de meia-idade, que empunhava a chave da Kombi, adornada com um chaveiro farto.
– Novecentos quilômetros até lá – informou o agente funerário.
– Então eu quero tanto – apressou-se o motorista, com sua proposta. Nos anos 1990 a inflação era vertiginosa e a troca de moeda fato corriqueiro no Brasil. Nem lembro o valor cobrado. O funcionário prometeu consultar os patrões, a família do finado, estipulou prazo para a resposta.
Explicou que o morto era assaltante de bancos, tombara em tiroteio com a polícia. Todo mundo recordou, então, do assalto cinematográfico de dois dias antes, com fuga, reféns, tiroteio, mortes e uma vasta cobertura da imprensa, as manchetes se sucedendo, sangrentas. O assalto fora no Sul da Bahia, mas a perseguição trouxe o drama para a Feira de Santana, os detalhes emocionantes podiam ser conferidos nas páginas dos jornais, ganharam destaque nos telejornais soteropolitanos.
– Vou levar o caixão até o São Francisco e lá despejo no rio – brincou o motorista, provocando gargalhadas. Depois, sério, preocupou-se com os detalhes da viagem: a remoção dos bancos da Kombi para acomodar o caixão, mobilizar alguém para acompanhá-lo na jornada extensa, madrugada afora. Calculou que sairia de Ipirá – passaria por lá antes da viagem – no início da madrugada.
“Mas só aceito viajar se for por um ‘tiro’ de dinheiro”, esclareceu. E explicou seu cálculo: multiplicou a receita pela condução de dez passageiros até Ipirá por dez – a diferença da distância entre as duas viagens – para a ida e para a volta. Disse que não faria por menos, se inteirou sobre o assalto, o tiroteio, as mortes. Quem pagaria o traslado? Supunha-se que a família do assaltante morto.
– Ladrão de banco tem dinheiro, nunca é enterrado como indigente –esclareceu alguém.
Depois a praça foi se esvaziando, os viajantes que iam para Ipirá embarcaram, os pássaros silenciaram e, no começo da noite, o caixão do assaltante foi embarcado – com solenidade e muita labuta – para a derradeira viagem em direção ao Oeste Baiano.
Os poucos retardatários acompanharam o ritual em silêncio e um deles, depois da fúnebre partida, filosofou um pouco sobre a brevidade da vida e o caráter trágico da vida, já sob as sombras da noite que desabara por completo.
Por André Pomponet