André Pomponet*
O garoto deve ter 11, talvez 12 anos. Na mesa do restaurante em frente à enseada de Botafogo, lá no Rio de Janeiro, comia silenciosamente. Nem recorria à mesa para apoiar a marmita de isopor: sustentava-a com uma das mãos, enquanto com a outra manuseava o garfo de plástico, revolvendo o feijão preto, o macarrão, o arroz. Ao seu lado, sobre a mesa, uma caixa pequena com gomas de mascar, coloridas. Deduzi que mercadeja o produto pelas ruas agitadas da zona sul da capital carioca.
Enquanto mastigava, lançava o olhar meio perdido à distância, em distração. Distração ou reflexão? O olhar sem foco emprestava-lhe uma expressão adulta, de quem pensa na vida nos intervalos da labuta estafante. No fundo, era adulto. O corpo magro e o rosto infantil contradiziam a constatação. Mas a rotina feroz pelas ruas da cidade, as preocupações com o próprio sustento, o gesto adulto de sentar sozinho num restaurante e comer, a própria expressão sisuda, tudo empurrava-o para o mundo dos adultos.
Antigamente o trabalho precoce era o destino natural dos filhos dos mais pobres. Logo cedo muitos abandonavam a escola e abraçavam tarefas miúdas, como ajudantes em borracharias, oficinas mecânicas, gráficas; outros vendiam picolés e sorvetes empurrando carrinhos, tornavam-se feirantes precoces, executavam tarefas secundárias em pequenas fábricas.
Quem persistia na escola, penava. Normalmente estudava à noite, compartilhando cadeiras escolares com colegas adultos. A sofrível qualidade do ensino freava parte de suas aspirações. O cansaço também fazia sua parte, apesar da vitalidade juvenil, comum à idade. Tempos depois, a maioria engordava as estatísticas dos brasileiros que não conseguiram concluir, sequer, o ensino fundamental.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, teve o mérito de despertar a sociedade para a trágica situação de milhões de crianças e adolescentes Brasil afora. Também contribuiu para que deixassem de ser tratados como adultos, o que normalizava sua precoce entrada no mercado de trabalho. E, sem dúvida, muitas políticas focadas em crianças e adolescentes reduziram sua vulnerabilidade ao longo das últimas décadas.
Mas o trabalho infantil persiste, silencioso, Brasil afora. Aqui na Feira de Santana, também. Não é incomum ver meninos, meninas, vendendo doces, chicletes, balas, lavando carros pelas ruas, lavando pára-brisas nos semáforos.
Segunda-feira, na rua Comandante Almiro, dois deles seguiam em bicicletas com seus baldes e esponjas. Numa esquina, provocaram outro que se aventurava com doces em uma caixa, abordando transeuntes. Subitamente houve uma curta discussão, palavrões, o que vendia os doces indignou-se, arremessou uma pedra nos que já iam longe, com suas bicicletas.
O ar deles lembrava o do garoto carioca. Apesar de meninos, ostentavam feições adultas, um ar de independência que, talvez, os reduza à condição de prisioneiros quando a idade adulta, de fato, chegar…
* André Pomponet é economista, jornalista e atua na TV U/ Uefs – Universidade Estadual de Feira de Santana
