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quarta-feira, 11 setembro, 24
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O dublê de escritor anônimo e comerciário da Sales Barbosa

Os textos passam a repousar em armários e gavetas à medida que ganham versão final, vão ficando prontos, após emendas e correções. A elaboração é à moda antiga: em tradicionais cadernos pautados, a caneta esferográfica azul – sempre azul – vai despejando a torrente de ideias. Depois, depura-as, com vagar, à noite, na sala acanhada da residência, no modesto conjunto habitacional na periferia feirense. Tudo após o jantar, quando todo mundo já foi dormir.

Indago sobre computador, notebook, a cômoda modernidade dos dias atuais. Ele desconversa, inspira-o a caneta e o papel, o quase imperceptível ruído da esferográfica sob o silêncio da madrugada. Resiste às tecnologias, é pouco simpático ao universo digital. Mal usa celular. No fundo, assemelha-se àqueles saudosistas impenitentes, imersos num passado idealizado. É o que lhe digo e ele sorri, os olhos sonhadores.

Conheci-o décadas atrás – antigo colega de escola lá no Sobradinho – e, desde então, via-o com alguma regularidade, depois os encontros foram se espaçando. Labutou – como comerciário – em lojas na Sales Barbosa, vendendo tecidos, vendendo confecções, desdobrando-se no caixa, no controle de estoques. Casou, os dois filhos já estão adultos.

– Uma vida normal! A diferença é que escrevo! Contos, crônicas, poesias. Até comecei alguns romances, mas abandonei, essa vida atribulada não permite!

A mulher, às vezes, cisma, recriminando-o por ocupar gavetas e armários com dezenas de cadernos antigos, desperdiçar finais de semana, avançar madrugada adentro escrevendo, gastando energia elétrica, desprezando o sono. Lamenta: sua inclinação para a leitura, a disposição para a escrita, nunca foram assimiladas pela família.

– Na verdade, queria ter cursado Letras. Mas o casamento cedo, os filhos, a necessidade de trabalhar, tudo isso interrompeu minha trajetória. Mas não me queixo…

Quando pretende publicar aquilo que produz? À pergunta, inevitável, reage com um silêncio solene, imposto por pensamentos contraditórios. “Não sei se o que escrevo vale alguma coisa. E é tudo muito pessoal, tenho um certo pudor de ficar me expondo. Mas penso, sim, em sair publicando em algum momento”.

Sugiro que utilize pseudônimos, que recorra à tecnologia que viabiliza a difusão de ideias. Inflexível, refuta a tecnologia, o pseudônimo como recurso para não se expor. Não explica porquê, mas não insisto: cada um com suas limitações, suas resistências, seus tabus. O papo se estende um pouco mais ali na Praça do Lambe-Lambe, em meio aos passantes e ao voo desajeitado dos pombos. Pergunto se não o angustia escrever tanto e ninguém ler. Quem escreve sempre quer ser lido, argumentei.

– Incomoda um pouco. Mas sou paciente. Tudo tem o seu tempo. Sou um pouco espiritualista, estou aqui me aprimorando. O que não sair agora, quem sabe sai mais à frente, noutra vida? Sempre penso nessas coisas…

Por fim, sorriu um sorriso conformado. Foi se afastando, tinha suas tarefas, cessava o intervalo de almoço na loja. Comia sempre por ali, nas barracas detrás do Mercado de Arte Popular, nalgum restaurante barato. Também levava comida, o repuxo do custo de vida vergava-o, mesmo com os filhos já trabalhando.

– Qualquer dia, quem sabe, passo alguma coisa para você ler. Até lá…

Apressou o passo, a loja ficava um pouco mais adiante. Formal, empertigado, a farda limpa, ajustada e bem passada, encaixa-se no perfil daqueles comerciários de antigamente. Escrevinhador anônimo, deve passar por excêntrico, esquisito, entre os colegas de trabalho…

Por André Pomponet

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