Por Emiliano José
Confesso: tentação de torcer contra, surge.
Seria besteira, longo concluo.
Futebol está na alma do nosso povo.
Parte indissociável de nossa cultura.
Agora, é duro, viu?
Acho foi Milly Lacombe: é uma seleção sem alma, a brasileira.
Contrariar a jornalista: de alma capitalista.
Tomada, inteiramente, tomada por um deus por demais atrevido, sedutor: o deus-dinheiro.
Coadjuvante: o deus-mercado.
Duas coisas me impressionaram, a lembrar da ação desses deuses.
A primeira, a festa de Daniel Alves, um fervoroso adepto do atual presidente da República, tal e qual Neymar. As informações estão em matéria de Beatriz Cesarini, publicada em UOL São Paulo, em 4/12/2022 – ela não me deixa mentir.
Festa no Jardim Europa, zona sul de São Paulo.
Coisa de nobre.
Das arábias.
Para tirar a ideia da festa do papel, Daniel Alves desembolsou R$ 1,7 milhão.
A festa, chamada Goodcrazy, nome originário do apelido criado por Alves para ele próprio, traduzido assim livremente como maluco beleza, teve três telões espalhados pela mansão, utilizada em dias comuns como escritório pelo proprietário Adib Abdouni, um dos grandes criminalistas do Brasil.
A ideia: agregar empresários e famílias em uma festa intimista para celebrar o Brasil na Copa.
Há ingressos à venda, coisa de R$ 450 por pessoa: direito a água, refrigerante, cerveja, gin e uísque, e um bom cardápio de salgados, pães, queijos e frios, tudo à vontade.
– Mi casa es su casa.
Recado de Daniel Alves para divulgação da Goodcrazy.
Na partida Brasil e Camarões, a casa estava entupida, saía gente pelo ladrão.
Presentes, entre as 450 pessoas a lotar o ambiente, empresários à mão cheia.
Dos ramos imobiliário, alimentício e, não podiam faltar, do mercado financeiro.
Seleção perdeu o jogo, mas é de somenos, a festa foi boa.
Já estávamos nas oitavas, uma derrota sem importância, e o uísque, da melhor qualidade.
Daniel Alves já prometeu: hexa nas mãos, e a Goodcrazy receberá a seleção brasileira em grande estilo, com direito a curtir tudo à vontade.
Não se sabe do destino da festa se o hexa não acontecer.
Talvez comemorem do mesmo jeito.
O outro acontecimento, a zombar da miséria do povo brasileiro, a fazer escárnio da fome por que passam mais de 33 milhões de pessoas, foi o bife de ouro patrocinado pelo milionário Ronaldo Fenômeno (matéria de 3/12/2022, também da UOL).
Churrascaria Nurs-Et, Doha.
Ronaldo chamou alguns jogadores da seleção, e lá, na sofisticada churrascaria, provaram peças de carne cobertas por ouro 24 quilates – tais peças podem custar cerca de R$ 9 mil. O prato custa no mínimo R$ 3.300,00.
Comentaristas do UOL News Copa qualificaram o tal jantar de carne folheada a ouro 24 quilates de “ostentação besta”. Não só isso, eles sobretudo evidenciaram, como disse Casagrande, falta de sensibilidade em meio a notícias de aumento brutal da pobreza do Brasil.
Insensibilidade é pouco.
Os dois jogadores, um ainda jogando, o outro hoje um financista do futebol, zombaram do povo brasileiro.
– Nós podemos, vocês não. Podemos fazer festa maluco beleza. Podemos comer carne coberta por ouro. Se não podem nada disso, que se lixem.
Este foi o recado.
Cheio de escárnio.
Confesso minha indignação e tristeza.
Uma seleção assim, contaminada pelo deus-dinheiro, sem qualquer empatia com o povo brasileiro, dificilmente ganha uma copa.
Não, não me iludo.
Não há possibilidade de voltar a um tempo onde se falava de amor à camisa.
Futebol hoje é mercadoria, e ponto final.
Um valor de troca, como dizia o velho Marx, e somente isso.
Os capazes de chegar ao Olimpo por talento e bons padrinhos preferem, salvo as exceções, não olhar pra baixo.
Como se temessem voltar aos tempos de miséria.
Melhor esquecer aqueles tempos, e viver suntuosamente, pulando de clube em clube, ao sabor dos deuses mercado e dinheiro, tão poderosos e fascinantes, tão sedutores.
Há, um ou outro, capaz de ainda sentir empatia com nossa gente. Cito Richarlison, para não dizerem que não falei de flores. Uma flor no meio do deserto.
Torcendo pelo Brasil, mas com trava na garganta.
É muita zombaria, muito escárnio com nosso povo, e vindos de seres cujas existências se viram marcadas pela miséria, por enormes dificuldades.
Delas, não querem lembrar.
E por isso, ostentam, a revelar vida em outros mundos.
Mundos suntuosos, dos quais não querem mais se afastar.
Ao contrário daqueles outros, da infância e adolescência, dos quais querem esquecer.
E para tanto, querem ficar bem longe.
E o Catar é longe.
E tem carne boa, coberta de ouro…
*Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes).
Fonte: Pátria Latina