Passei parte da minha meninice morando na Rua da Palma, ali no Sobradinho. Naquela época não tinha noção do sentido poético da denominação: criança, julgava que fosse referência às palmas das mãos ou dos pés, sei lá. Só depois de crescido é que fui absorver a carga lírica da homenagem, referência à planta sertaneja que – segundo me ensina a internet – é originária do México. Pode ser. Mas sua identidade com o sertão nordestino, com a vida áspera, mas bela, dos sertanejos, é visceral.
Vá lá que, naquela época – e ainda hoje – não existiam palmas na Rua da Palma. O que havia eram esguias, mas imponentes, baraúnas, defronte a casa em que residíamos. Pela manhã elas projetavam uma sombra boa, que abrigava as brincadeiras das crianças. À tarde, as copas refletiam a luz alegre do sol, sobretudo nos incandescentes verões feirenses.
Nunca esqueci as obras que trouxeram calçamento e esgotamento sanitário para a Rua da Palma. Foi na primeira metade dos anos 1980, João Durval era o governador. Bem comportado, não ia brincar nos imensos montes da terra vermelha, revolvida, movidas pelas obras. Os garotos da vizinhança, ao contrário, esbaldaram-se, sujando-se, gritando e aproveitando aquela farra única.
Até então, o Sobradinho era área de expansão, capoeiras cobriam os limites da Rua da Palma. Vicejavam minadouros: a água escorria, cristalina, alimentando brejos miúdos que abrigavam uma vegetação lacustre que resistiu durante muito tempo. Lá, ouvíamos, no começo da noite, o coaxar incessante dos sapos.
Algumas recordações são inesquecíveis: do topo de uma ladeira viam-se as luzes das Baraúnas, a própria Feira-Serrinha mais além – na época, havia poucas construções, os horizontes feirenses eram muito mais amplos – e, menino, internalizei aquele contraste: as taboas, o brejo que o minadouro alimentava, o coaxar dos sapos e, bem adiante, as luzes citadinas, os automóveis deslizando pela rodovia, o casario se avolumando.
Recentemente, porém, fiz uma descoberta surpreendente: a Rua da Palma já não seria mais Rua da Palma. Há muito tempo, aliás: tornou-se, desde 1991, rua Almachio Alves Boaventura. A lei promovendo a mudança leva o número 1465/1991. O homenageado foi prefeito da Feira de Santana entre 1951 e 1955.
Mas não para aí: anos antes, em 1987, a via foi rebatizada como Otacílio Sena através da lei 1060, do mesmo ano. Segundo o site da Câmara Municipal, ambas as homenagens estão em vigor. Haveria duas ruas da Palma no Sobradinho? Ou as homenagens foram sobrepostas? Para os Correios, segue como Rua da Palma. Para a planta genérica da prefeitura, também.
Para aumentar o mistério, não há referência a outras ruas que levem os nomes dos homenageados aqui na Feira de Santana. Um leitor cético diria que, no Brasil, há leis que não pegam. As que batizam nomes de rua também, pelo jeito. Noutras palavras: a Rua da Palma mudou de nome duas vezes, mas o nome permaneceu o mesmo, o original.
A propósito: nada tenho contra os eventuais homenageados, sobre os quais, inclusive, não disponho de maiores referências. Mas não pude deixar de recordar os versos de Manuel Bandeira, em “Evocação do Recife”: “Rua da União…/Como eram lindos os nomes das ruas de minha infância/Rua do Sol/(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)”. Só que o sentimento logo se desfez, pois descobri que, pelo visto, o nome não mudou…
Ficarei aqui aguardando que o mistério seja desvendado. Mas é grande a tentação de associar o episódio à palma – a planta – resistente, tenaz, benfazeja – o termo da moda seria resiliente – e enxergar nessa referência a teima na manutenção do nome original, poético, prenhe de nossas raízes. Que assim permaneça!