Foi num final de tarde de sábado. Aquela escuridão azulada, típica do entardecer, já se irradiava pelo céu de nuvens acinzentadas. No Cruzeiro, as primeiras sombras envolviam as árvores esguias, o casario acanhado, os pedestres vivazes, os automóveis que avançavam pelas cercanias. No bar antigo – era escuro, piso áspero, paredes descoradas, mesas e cadeiras plásticas – a clientela espalhava-se pelas mesas, litrinhos e litrões esvaziando-se com regularidade. Foi quando o aparelho de som lançou a canção inesperada:
“…Eu preciso te falar,
Te encontrar de qualquer jeito
Pra sentar e conversar,
Depois andar de encontro ao vento”.
Na mesa da calçada, um sujeito de camiseta regata e bermuda de surfista suspendeu a ruidosa conversa, esticou as pernas, sacudiu os pés enfiados numa sandália de dedo. Os olhos percorriam as árvores, a torre da igreja do outro lado da praça, os táxis estacionados. No que pensava? Difícil descobrir. Mas contraiu o rosto numa careta breve, uma expressão sonhadora dominou-o por alguns instantes, enquanto a música escorria.
“Eu preciso respirar
O mesmo ar que te rodeia,
E na pele quero ter
O mesmo sol que te bronzeia”
Detrás do balcão uma mulher, jovem e ágil, cabelos compridos, lavava os copos americanos na pia do botequim. Ensaboava-os, metia-os sob a torneira aberta, sacudia-os e, por fim, dispunha-os numa bandeja metálica. A mente, no entanto, parecia divagar com a canção, os olhos não viam a pia grosseira, os copos ordinários, a bandeja fosca, a tarefa enfadonha. Resgatava – quem sabe? – uma paixão antiga, um amor adolescente, até recente, pois era jovem ainda.
“Eu preciso te tocar
E outra vez te ver sorrindo,
E voltar num sonho lindo”
Numa mesa lateral o sujeito de carapinha branca também se entretinha com a canção. Será que recordava mulheres remotas, imaginando como estavam naquele fim de tarde de sábado? O fato é que suspirou e esticou o beiço, acariciando o copo americano. Do seu lado, o parceiro de copo, de cabeleira encanecida, vasta, e feições envelhecidas, até arriscou cantarolar, baixinho.
“Eu preciso descobrir
A emoção de estar contigo,
Ver o sol amanhecer,
E ver a vida acontecer
Como um dia de domingo”.
Madura, a mulher que servia a clientela, limpava mesas, atendia pedidos e anotava o valor da conta num pequeno bloco de papel pardo, retangular, também se entreteve por alguns instantes, bem do lado da caixa de som. Por breves momentos – logo foi interrompida por uma solicitação qualquer – ela mergulhou em suas recordações, a música lançando-a em misteriosos pensamentos. O olhar, profundo, demonstrava a intensidade das lembranças. Mas foi logo atender o pedido, o movimento era incessante na tarde de sábado.
“Faz de conta que ainda é cedo,
Tudo vai ficar por conta da emoção
Faz de conta que ainda é cedo,
E deixar falar a voz do coração.”
O refrão da canção de Sullivan e Massadas – a clássica gravação de Gal Costa e Tim Maia é de 1985 – espraiava-se pela calçada, ia morrer sob as sombras crescentes das árvores na praça. Por fim, a música acabou e por alguns instantes prevaleceu uma angústia difícil até de descrever. Mas logo veio um reggae – é o ritmo clássico das tardes de sábado na Bahia – e todo mundo recobrou o fôlego, imergindo, então, nos embalos da noite de sábado, que começava…
Por André Pomponet